quarta-feira, 10 de junho de 2015


Desconforto
Enquanto subo aquela ladeira chamada rua interminável, meus pés atropelam pedregulhos, papéis e chicletes demasiados que preenchem as ruas da cidade.
E minha felicidade inocente de criança-quase-adolescente vai tomando o lugar dos chicletes, dos papéis e dos pedregulhos por uma cidade florida e alegre, onde tudo se encaixa em seu devido lugar.
Mas esse sonho que se parece tornar algo concreto, se esvazia pela realidade e cotidiano que eu vivo naquele momento, o desconforto.
Todos os dias caminhando com os pensamentos antes dos pés, sempre que passo pela frente da inacabável obra, vejo homens que se parecem dignos de seu trabalho estirados nas sombras de grandes árvores enquanto tomam garrafões de dois litros de coca-cola e apreciam a inadimirável vista de pessoas passando pela estreita calçada.
Digo e repito inadimirável pois sempre que algo novo e talvez chamativo `aqueles olhos interrompe a vista horizontal, é forte motivo de desqualificação, objetificação e zombeteira daquelas pessoas, ou melhor, mulheres.
A frase costumeira que ouço da boca de outros quando estou perto, normalmente se parece com "mais uma daquelas cantadas de pedreiro", como se fosse algo que as pessoas se acostumaram, como se fosse algo sem importância, como se fosse algo normal.
Não consigo imaginar como os homens que conseguem falar coisas dessas aos outros podem ter uma família, uma vida feliz, um conforto, mas imagino-os como pessoas carentes, que precisam de atenção dos outros, os desconhecidos, para preencher a vida deles.
Mas ao mesmo tempo também não consigo imaginar uma mulher no lugar deles, falando coisas obscenas aos homens que passam a sua frente. E se fizessem isso, com certeza seriam xingadas e desqualificadas, coisa que raramente uma mulher faz a um homem.
Depois disso tudo, homens assim se sentem no direito de dizer que a mulher pertence ao sexo frágil, que não tem opinião, que não pode trabalhar, que seu lugar é em casa cuidando dos filhos, que lazer não é coisa delas, que não autorizar-las a usar o que quiser é questão de proteção, que não podem falar com outros homens se não elas serão xingadas, que lugar público não é lugar de mulher. E então depois vem falar que vida de mulher é fácil, e que se recebessem "elogios" assim todos os dias, teriam ganhado o dia.